Carta Aberta
Petrópolis, 13
de maio de 1980
Meu caro amigo,
Justamente por
ser hoje 13 de maio, estou lhe escrevendo esta carta. Por que
hoje? Porque foi esta a data marcada pelos Borboletas Azuis, uma
estranha seita que surgiu no nordeste, para o início do fim do
mundo. Segundo eles, as chuvas torrenciais que irão cobrir nosso
planeta de água iniciarão hoje.
Olho pela
janela e vejo um céu azul e muito limpo, bem diferente daquele
céu que a gente imagina para os dias apocalípticos. Nem uma
nuvem.
Fico então a
imaginar a quantidade enorme dos seguidores desta seita que,
neste momento, talvez, estejam se preparando, movimentando suas
famílias e seus pertences, para poderem escapar de um cataclismo
iminente. Penso também há quanto tempo estarão conduzindo suas
vidas para este momento. E, se nada acontecer, o que vai ser
feito de sua fé, de sua razão para viver?
Isso não me
surpreende. Quantas vezes, quantas seitas causaram pânico na
multidão de seus seguidores, profetizando para hoje ou para
amanhã o dia do Juízo Final?
Fico pensando
nesta necessidade estranha que têm as pessoas de acreditarem em
alguma coisa, de aceitarem algo como verdade insofismável e,
então, traçam os rumos de suas vidas visando uma meta tão
ilusória!
Fala-se tanto
em final dos tempos... mas quem estará com a Verdade? São João
Evangelista? Nostradamus? Júlio Verne? Os Borboletas Azuis? Onde
estará a verdade?
E, à
propósito, o que é a Verdade?
Quanto mais
penso, mais concluo que não consigo compreender o que possa ser
a Verdade. Já descobri que as verdades que nós conhecemos foram
criadas pelos próprios homens. E são os homens perfeitos para
criarem verdades? Em que podemos confiar para termos uma base
sólida que possa sustentar as verdades em que acreditamos?
Nossos sentidos?
Engraçado,
quando eu era pequena, ensinaram-se que só se deve dar crédito
àquilo que a gente pode pegar, cheirar, ver, ouvir ou provar. O
resto é ilusão, é fantasia. Mas agora, disto eu tenho
dúvidas. O sabor, por exemplo, é algo em que não confio. Como
posso confiar, se existem coisas que para uns são deliciosas e
para outros insuportáveis? Milhares de pessoas se deliciam com
pratos feitos com peixe cru e outras tantas apreciam o queijo
estragado. Então, só podemos dizer se a coisa tem gosto bom se
a provarmos. Não podemos acreditar na verdade que os outros nos
dizem. E, quando chegamos à conclusão que um alimento tem ou
não um bom sabor, esta conclusão só serve para nós, pois os
outros podem ter opiniões diferentes das nossas. E, ainda por
cima, se inibirmos os nervos que ligam o paladar ao cérebro,
não sentiremos o menor sabor naquilo que comemos. Então onde,
na verdade, está o gosto? No alimento, no paladar ou no nosso
cérebro? E alguém me disse que eu devia confiar apenas nos
sentidos, pois somente eles transmitem a nós a realidade que nos
cerca.
Bom, os
sentidos são cinco. Cheguei à conclusão que não posso confiar
muito no paladar, mas ainda restam quatro.
Mas estes
quatro são bem depressa reduzidos a três quando me lembro
quantas pessoas já morreram, traídas por seu olfato, que não
lhes avisou do gás que escapava ou do fogo que começava a
destruir suas casas.
Mas, tudo bem,
ainda temos o tato, a audição e a visão.
Mas o tato
também falha tanto! Até o frio e o calor, duas sensações tão
diferentes, podem confundir-se para nós. O frio muito intenso
dá a impressão de queimadura. Se mergulharmos uma de nossas
mãos em água quente e outra em água fria e, depois,
mergulharmos ambas em água morna, esta parecerá quente para uma
das mãos e fria para a outra.
Onde está a
verdade? Nos sons que ouço? Mas eles também me confundem,
principalmente porque sei que existem sons que não ouço, sons
infinitamente sutis que um animal percebe e eu não. E, mesmo
aqueles que percebo, como posso defini-los? Se um ruído para mim
é insuportável e, para outros, agradável? Se, às vezes, ouço
sons que os outros não ouvem? Se fico tentando inutilmente
descobrir de que lado vem um ruído? Que som é o som real?
E a visão?
Quedo-me na contemplação silenciosa de uma estrela que já pode
ter deixado de existir há milhares de anos.
Olho as cores,
mas sei que as nuances que vejo podem não ser as mesmas que
você vê. Para os daltônicos, as cores apresentam outros
significados, se vemos uma tonalidade à luz do dia, a mesma nos
parecerá diferente à luz do luar.
Assim como o
conceito de belo e feio. Os homens criaram os padrões de beleza
e a eles fazem suas comparações. O que é belo para uns, não o
é para outros.
Olho uma
circunferência e, dependendo de minha posição, ela me parece
uma elipse. As formas variam de acordo com o pondo de vista de
onde são observadas.
Tenho uma
laranja em minhas mãos, posso vê-la, seni-la, mas se esta mesma
laranja estiver a alguns metros de mim eu a verei pequenina e, se
for afastada mais e mais, não poderei mais vê-la, então. No
entanto, a laranja continua a existir, tão real quanto era
antes, quando estava em minhas mãos. E aquela pequenina formiga
que passeia na superfície desta laranja? Para ela, de que
tamanho será a laranja, como lhe parecerá sua casca rugosa? E
de que tamanho será esta mesma laranja para uma gigantesca
criatura? Qual, então, o verdadeiro tamanho da laranja? Aquele
que nós vemos, que a formiga vê, que o gigante vê?
Chego, então,
à conclusão de que as coisas não têm tamanho nem forma e que
nós, seres humanos, criamos o mundo que percebemos. E se o mundo
que percebemos não for bem como supomos? E se formos também
minúsculas formigas andando no dorso de uma laranja enorme, a
que damos o nome de Terra? E por que enorme? Enorme apenas para
mim, para nós, mas para outras consciências pode, na verdade,
não passar de uma pequena laranja. Ou, quem sabe, uma pequena
célula pertencente a algum imenso organismo.
Esta idéia me
surgiu no dia em que li um artigo que dizia que experiências
realizadas em 1924, na Rússia, provaram que o pensamento humano
emite ondas de alta freqüência e que os elétrons que formam
essa onda são produzidos no cérebro. Ao mesmo tempo, aprendi
também que no universo encontramos partículas atômicas
os prótons cósmicos carregadas de elevada energia,
milhares de vezes mais altas que a energia que recebemos do sol.
E ainda não descobriram a possante fonte de energia que possa
ser o canhão desses prótons cósmicos. Seriam os quasares as
fontes desta energia? Porque li uma vez que os quasares são
certos objetos celestes, formados por grandes e luminosas nuvens
de gás, que se compõem de bilhões de estrelas e que produzem
uma energia incrível, mais energia do que toda uma galáxia,
mais energia do que um octilhão de bombas de hidrogênio, e
enviam raios de luz e ondas de rádio desde pontos que podem
distar até 10 bilhões de anos-luz.
Sei que existe
uma lei que se perde nos alvores da civilização, que diz: Assim
como é em cima, assim é em baixo. Baseada nesta lei, fiz uma
rápida comparação entre o funcionamento do corpo humano e o
funcionamento dos corpos celestes.
Se no corpo
humano observamos uma consciência que controla a atividade de
todos os seus órgãos e de todas as células que constituem
esses órgãos, no Universo esta mesma consciência controlaria
então o movimento das galáxias e das estrelas. E não teriam as
galáxias ou grupos de galáxias uma função universal, assim
como os órgãos do nosso corpo possuem uma função em nosso
organismo? E se o pensamento humano é capaz de produzir ondas
magnéticas, capaz de criar elétrons, então os prótons
cósmicos, esta energia formidável de origem ainda desconhecida,
seriam produzidos por uma fonte que corresponderia à Mente
Universal? Seriam os quasares gigantescas células desta Mente
Universal? E, neste caso, existiria apenas uma Mente Universal,
ou várias, cada uma delas pertencendo a um grupo imensurável de
corpos celestes?
Meu amigo,
neste ponto, eu faria uma pergunta: E como funcionaria esta
Mente? Quais seriam seus conhecimentos e qual a sua relação com
o homem? Seria esta Mente uma memória Universal? Pois, se no
reino cósmico, além da velocidade da luz, deixam de existir os
limites de tempo e de espaço, esta Mente conteria então todo o
conhecimento intelectual e científico conseguido pelos seres
viventes, no passado e no futuro. Seria ela os Arquivos
Acáshicos?
Muito bem, meu
amigo, aqui fica uma dúvida que tenho: A mente humana é capaz
de harmonizar-se com outras mentes humanas, havendo então aquele
fenômeno conhecido por telepatia. E não seria então capaz de
também harmonizar-se com a Mente Universal e, nesta telepatia
suprema, absorver qualquer tipo de conhecimento? Será que então
poderia alcançar a Verdade? Poderia vislumbrar o futuro? Mas,
neste caso, estará o futuro predeterminado? Ou ele se constrói
do presente? Podemos prever o futuro? Podemos modificar o futuro?
Mas, se ela já está previsto, onde fica o livre arbítrio? E,
se existe o livre arbítrio, como pode estar o futuro
predeterminado?
Sabe, meu
amigo, estas coisas me confundem. Eu aprendi uma vez, e nunca
mais me esqueci, que a mente humana cria, em planos superiores,
os acontecimentos que se projetarão futuramente no mundo. Como
se nossa mente formasse, numa espécie de matéria sutil, moldes
que um dia se condensariam no plano material. E aprendi também
que, não somente nosso pensamento faz isso, mas também a
vontade de seres superiores que tomam conta do destino do nosso
mundo. Eles também formam, com suas mentes, os moldes dos
acontecimentos futuros. Neste caso, o vidente seria então a
pessoa capaz de ler esses registros e, dessa maneira, poderia
prever aquilo que irá acontecer.
Mas agora,
penso eu, se o nosso pensamento pode criar formas etéreas,
também deve ser capaz de modificar aquelas que já foram
criadas. Deve ser por isso que muitas profecias não dão certo,
não é? Quem sabe quantas vezes, com a nossa vontade, alteramos
os acontecimentos que iriam ocorrer num futuro próximo ou mesmo
distante?
Acredito que
isto não faça diferença porque, a essas alturas, o tempo é o
que menos importa. E será que o tempo existe? Eu sei que um dia
o homem inventou uns aparelhos para contar o tempo, criou os
dias, as horas, os minutos, os relógios e agora vive escravizado
a isso tudo. Quando penso nisso, lembro-me da história que uma
vez ouvi não sei de quem: "Era uma vez um Ser Superior que
vivia num mundo muito diferente do nosso. Um dia ele resolveu
fazer uma viagem pelo espaço e conheceu a terra. Aproximou-se
para ver como viviam os habitantes daquele planeta tão bonito, e
assustou-se. Viu tanta coisa errada, tanto ódio, tanta guerra,
tanta ignorância das leis universais, que resolveu dar uma ajuda
àquela gente. Pensou então: Posso fazer isso num piscar de
olhos... Eles precisam tanto de ajuda. E então o Ser Superior
projetou-se para a terra, para uma criança que nascia naquele
momento. Mas, naquela fração de segundo, quando mergulhava no
recém-nascido, algo lhe passou pela mente: Mas aqui, neste
planeta, existe uma coisa chamada Tempo. Quantos anos terrenos
terei que ficar encarcerado, num corpo físico, numa matéria
tão densa? E, neste momento, a criança lançou ao mundo o seu
primeiro choro."
Veja só, meu
amigo, esta questão de tempo realmente me atrapalha. Olho meu
cão, de quatro anos, adulto; poucos anos mais e entrará na
velhice. será que o tempo para ele conta como para mim? Será
que seus quatro anos de vida passaram para ele como para mim
correram os últimos quatro anos que vivi? E estes insetos de
vida tão efêmera? Vinte e quatro horas, para eles, terá a
duração de apenas um dia?
Se até mesmo
para nós o tempo difere... Você quer ver? Será que para um
náufrago solitário, numa frágil balsa ao sabor das ondas do
mar, uma semana tem a mesma duração da nossa semana, tão
corrida, atribulada, da casa para o trabalho, do trabalho para a
casa? Duvido...
Até mesmo no
nosso dia a dia o tempo nos confunde. Por que será que os
momentos ruins passam tão devagar e os momentos bons são tão
rápidos? Você já reparou como meia hora de uma conversa
agradável passa muito mais velozmente do que meia hora na
cadeira de um dentista?
Veja só, toda
esta carta tão longa começou por causa dos Borboletas Azuis e
da pesquisa da verdade. Continuo sem encontrá-la. Vivo num mundo
no qual não posso confiar. Sei que todas as sensações que meus
sentidos me transmitem não são dignas de confiança. E, ainda
mais, qualquer impressão sensorial passa por uma longa estrada
de nervos até alcançar o cérebro, onde então se forma a
impressão da coisa. Fico eu a pensar: As sensações estarão
nas coisas ou no cérebro? Porque sem cérebro, não existem mais
as formas, os cheiros, os sabores, os sons. Vivo cercado por
estas formas que meus sentidos me mostram, mas sei que elas podem
não ser da maneira como as percebo. Olho em minha volta e defino
as coisas que me cercam: Isto está perto, aquilo está longe, ou
adiante, ou à esquerda, ou à direita, ou em cima, ou embaixo, e
o que é isto tudo senão formas de percepção? Estarão os
objetos nesta ou naquela posição? Aqui ou ali? Serão grandes
ou pequenos? Ou tudo isso é uma só coisa, ou outra coisa,
apenas com referência a nós mesmos?
Uma coisa
aparece de uma maneira para nossos olhos, de outra sob o
microscópio e diferente ainda se olharmos através de um
telescópio. Uma gota dágua, aparentemente límpida e
cristalina à olho nu, mostra uma variedade incrível de vida que
se agita, quando vista sob poderosas lentes.
Olho o céu
estrelado e sei que estou olhando para o passado, porque o brilho
daquelas estrelas leva milhões e milhões de anos luz para
chegar até nós. Então, como será, na verdade, o céu do meu
presente? Nunca irei saber, ou melhor, saberei daqui a milhões e
milhões de anos. E fico pensando nos nossos sábios, que estudam
este céu passado e constróem nossas verdades presentes sobre
bases que talvez já nem mais existam!
Meu amigo, onde
está a Verdade?
É nessas horas
que me sinto pequena, minúscula como aquela formiga que passeia
na laranja, menor ainda, como uma partícula de uma ínfima
célula pertencente a um organismo enorme. Mas uma partícula
pensante, que raciocina e pergunta: Onde está a verdade? E as
células, será que elas também pensam? Quem sabe? Pelo menos
executam um trabalho perfeito e racional, como se tivessem
inteligência. Talvez tenham mesmo...
Temos a mania
de dizer que somente nós, os maravilhosos e perfeitos seres
humanos, raciocinamos e temos consciência. Será mesmo? Penso
que se assim fosse, seríamos capazes de conhecer a Verdade...
E aqui estamos
nós, cercados por formas talvez ilusórias, rodeados por um
Universo que já passou, acompanhando o ritmo de um tempo que
não existe, caminhando para um futuro... Que futuro, se o tempo
nós mesmos o criamos?
Meu amigo, em
meio a toda esta confusão, faço a você uma última pergunta:
Quem sou eu? Quem é você? Quem somos nós, pobres seres
humanos, tão crentes no mundo que nos cerca, tão inconscientes
da Verdade que nos rodeia? Que Verdade? Quem tem a Verdade? Se
ela está com os Borboletas Azuis, talvez então esta carta nunca
chegue às suas mãos; se não, receba com ela o abraço
carinhoso de sua amiga e irmã,
Márcia.
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Texto de:
Márcia Villas-Bôas
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